18 de outubro de 2008

A noite cai num corte de eterna véspera

A noite cai e contempla um prato principal. Não me refiro, pois á iguarias servis em trono de rei do umbigo intacto. Iguarias servidas em louça nobre, ao soar de sininho solene e infame, chibata da criadagem rubra. Não é do meu feitio. Falo do banquete manso de pensamentos tortuosos, escorridos, caudalosos no travesseiro. Embalo do tempo mental alargado. Antes do sono. Este jantar em que de si se come só. Às vezes estes devaneios crus são apenas elegâncias extravagantes em seus pormenores. Culinária conceitual, sonhos, desejos. Às vezes, poucas estas vezes, convido uma velha companheirinha costureirinha do passado feio do eu. Submissa, mundana se entrega à mesa para ser devorada num deleite. A dor. È uma amiga triste daquelas. Passa muitos dias sem ligar, mas liga. Sem aparecer, mas aparece, relembra dissabores mal digeridos, aparece e acontece toda dona da noite. A noite caudalosa da dor em seus pormenores.Bate à porta e bate a porta. Invade a cama sem pedir licença. Senta come minhas entranhas em postas, pede sobremesa, me gelam as costas, inverte os papéis, sou todo presa, abate. Antes de sair pede um cafezinho, amargo até cair os dentes. Ainda não enfastiada da fome dos anos que sempre avançam em dormência distante. Ainda não enfastiada das alegrias e conquistas suculentas apoderadas do meu coração num corte seco, remói os grãos escondidos, farelos varridos para debaixo do tapete. A culpa é o tal do farelo de dor mal varrido para debaixo do tapete d’alma. È o que resta do consumo da dor e deixa consumada a costura doída do peito. A dor é uma viúva carente. È quem te lembra nesta véspera de aniversário que envelheces sem te tornar melhor. È a imperfeição explicitada pela cara cada vez mais suja de mundo e ausente de infância no espelho. A culpa está em estágio terminal, é uma lamentação hiperbólica. Hipocondríaca sedenta por insônia d’alma minha que arromba, e senta, e come, pede sobremesa num vagar fluido de aroma de café, intromete e aconselha o já irremediável. È convidada de honra a dor, sininho que soa solene e infame, chicoteia chibata chicoteia, mas não mata, só faz criado. Só vai embora quando desinverte os papéis e me permite ser dor anfitriã, criadagem rubra entre os talheres do espelho de data em que se cumpre a passagem dos anos. Deito as papilas num bocejo crônico e escravo. Cometo a indelicadeza de ser mal criado, indago a costureirinha para escapar do fio da navalha dos talheres e livrar suas agulhas do meu peito: Que horas são?

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